eu mereço...

À noite, na pracinha, a cidade nos verá enlaçados, e todos começarão a perguntar que casal é aquele. A mulher mais ferina do lugar virá sentar-se ao nosso lado e, dissimuladamente, prestará atenção à nossa conversa. Ah! Nós nos divertiremos conversando em francês, dizendo coisas terríveis em francês, como por exemplo:
– Tu es folle...
– Oui... Et toi aussi, tu es fou...
A velhota, a sirigaita, puxará conversa, perguntará quem somos, de onde estamos vindo. E nós lhe diremos:
– Nascemos um para o outro, viemos do ventre materno diretamente para esse encontro. A minha residência fixa é nos braços dessa senhora, e ela por sua vez tem seu endereço no meu coração. O nome dela é Meu Amor, e somos xarás. Pretendemos seguir viagem na direção do futuro. Alguma outra pergunta?
– Minha senhora, isto são coisas do tempo antigo. Já há pessoas casadas em excesso neste mundo, de modo que nós dois decidimos variar um pouco. Somos da opinião que os verdadeiros amantes devem residir em lugar incerto e não sabido, e que é nos olhos deles que se encontra o fulgor, o sacramento de sua comunhão. Não temos filhos, nem netos, nem mãe nem pai, nem avô nem avó, nem irmão nem irmã; somos impermeáveis à família e à amizade, somos apenas duas pessoas, não temos nada a ver com o mundo ao qual Vossa Excelência pertence...
Ela então espalhará pela cidade: “Aqueles dois não são comunistas, não são casados nem nada. São doidos.”
E viveremos felizes na clandestinidade, durante os dez anos estabelecidos pelo Ato Institucional e por mais dez anos, estabelecidos por nossa própria conta. Vinte anos!
Vamos, meu amor, vamos pedir para que nos ponham na lista. Quando a polícia vier fugiremos, a felicidade nos espera!
Taí um livrinho interessante: bem escrito, bem humorado, compacto e fácil de ser devorado em duas horas de leitura. O ponto alto fica com a foto do autor na orelha do livro (da edição em português). Figuraça!!!! E se você olhar antes para essa foto, vai ser difícil imaginar uma outra cara para Antoine, o protagonista esquisitão que, dentre outras tantas presepadas, chegou a traduzir Em busca do tempo perdido para o aramaico e a dublar os gritos de uma família de girafas num documentário sobre a vida animal. De fato, basta a informação de que Martin Page estudou antropologia para imaginarmos que muitas das situações vividas por Antoine ao longo da narrativa tenham um fundo de realidade na vida do autor. Eu mesmo, que me considero um “antropologo-cover”, me identifiquei bastante com algumas passagens (não a da tradução de Proust, nem a da dublagem das girafas). Afinal, para ser antropólogo, sentir-se um estranho nesse mundo de doidos já é meio caminho andado.
Depois veio o tal celular, o grande causador de câncer de cabeça e excesso de comunicação interpessoal. Com o celular eu era bem mais radical, afinal, tinha um telefone fixo
Agora é o tal do blog. Desde que ouvi falar nessa bagaça já o achei simpático. A idéia é boa, mas pensava com meus botões: “Já tem muito neguinho fazendo essa merda. Vou ficar contribuindo com lixo na internet?”. E aí concluí: “FODA-SE. Ninguém vai ler mesmo”.
Bom... é essa a história desse blog.